Unidade da Bíblia 2/2

Falando ainda sobre a unidade bíblica, um fato muito intrigante é: como esses 66 livros foram parar dentro da Bíblia? Quais são os escritos que realmente pertencem a Bíblia? Como foram reunidos e quem decidiu quais formariam o as Escrituras Sagradas? Para sanar essas e outras dúvidas, é necessário arrazoarmos sobre a questão do Cânon das Escrituras, que segundo Gruden pode ser definido como: “a lista de todos os livros que pertencem à Bíblia”.

Não podemos desdenhar a relevância desse assunto. As palavras da Bíblia são as palavras pelas quais (mesmo as vezes sem saber) norteamos várias de nossas decisões em nosso dia-a-dia.

Acrescentar ou retirar algo da palavra de Deus impediria o seu povo, a saber, os eleitos de Deus, de obedecer-lhe plenamente, pois as ordens removidas não seriam conhecidas pelo povo, e as palavras acrescentadas poderiam exigir das pessoas coisas que Deus não ordenou.

Em Deuteronômio 4:2 lemos: “Nada ACRESCENTEM às palavras que eu lhes ordeno e delas nada RETIREM, mas obedeçam aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, que eu lhes ordeno.”(grifo meu). Essa foi uma advertência de Deus dita por Moisés ao povo de Israel. Mas essas advertências não foram dadas somente ao povo de Israel, nem somente no livro de Deuteronômio, foram dadas também a todos. Quando João escreve o livro de Apocalipse, no final do capítulo 22, versículos 18 e 19: “Declaro a todos os que ouvem as palavras da profecia deste livro: Se alguém lhe ACRESCENTAR algo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. Se alguém TIRAR alguma palavra deste livro de profecia, Deus tirará dele a sua parte na árvore da vida e na cidade santa, que são descritas neste livro.” (grifo meu).

A determinação exata da extensão do cânon das Escrituras é de exímia importância para nós! Como diz o antigo hino: “eu sei em quem tenho crido, estou bem certo que é poderoso, pra guardar o meu tesouro, até o dia final”, para que a letra desse hino fosse composta, era necessário que o autor conhecesse o cânon bíblico, e sobre ele examinaremos agora:

 

1 DEFINIÇÃO DE TERMOS

A palavra “cânon” é proveniente da palavra grega kanon, cujo significado literal é vara, barra ou linha, um instrumento de medida, como a linha do prumo de um pedreiro. A palavra passou a ter o significado metafórico de padrão pelo qual as pessoas comparavam coisas e pelo qual julgavam suas qualidades ou valor (em Gl 6:16 a palavra “regra” é proveniente desse termo).

Nas artes ou negócios, a palavra cânon era utilizada às vezes referente a regra ou padrão usado para orientar o artesão. Na escultura, por exemplo de Policleto “O lanceiro era considerada o cânon ou a forma perfeita do corpo humano” (TDNT, 3, 597). A forma exprimida ali era o modelo de excelência do escultor.

Partindo desse significado metafórico surgiu a idéia de aplicar a palavra cânon a uma lista de escritos sagrados que possuíam autoridade divina especial. Sendo assim, tornaram-se o padrão, o modelo, o paradigma segundo o qual os fiéis poderiam avaliar outros escritos e idéias, e o conjunto de regras pelas quais poderiam ordenar a própria vida de fé e prática.

O erudito Norman Geisler alista uma tabela sobre o relacionamento de autoridade entre a igreja e o cânon como vemos abaixo:

Posição incorreta sobre o cânon Posição correta sobre o cânon
A igreja determina o cânon A igreja descobre o cânon
A igreja é a mãe do cânon A igreja é filha do cânon
A igreja é magistrada do cânon A igreja é ministra do cânon
A igreja regula o cânon A igreja reconhece o cânon
A igreja é juíza do cânon A igreja é testemunha do cânon
A igreja é mestra do cânon A igreja é serva do cânon
Fonte: Geisler (2002, p.108)  

 

Conforme Geilser, “Foi Deus quem regulou o cânon; o homem apenas reconhece a autoridade divina que Deus deu a cânon. Deus determinou o cânon, e o homem o descobriu.”. A diferenciação entre a determinação de Deus e a descoberta humana é essencial para a visão correta da canonicidade.

 

2 O CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO

De onde surge a idéia do cânon? A própria Bíblia (tendo em vista que ela é a revelação progressiva de Deus) dá testemunho do desenvolvimento histórico do cânon. A coleção mais antiga das palavras de Deus eram os Dez mandamentos, que constituem o início do cânon bíblico como lemos em Êxodo 31 versículo 18: “Quando o Senhor terminou de falar com Moisés no monte Sinai, deu-lhes as duas tábuas da aliança, tábuas de pedra, escritas pelo dedo de Deus.”.

Essa coleção de palavras de Deus, dotadas de autoridade total, plena e absoluta, aumentou ao longo da história de Israel. O próprio Moisés, um pouco mais tarde acrescentou palavras para que fossem colocadas ao lado da arca da aliança (Dt 31:24-26). Após a morte de Moisés, Josué também corroborou para ampliar a coleção de palavras escritas de Deus: “Josué registrou essas coisas no Livro da Lei de Deus…” (Js 24:26a).

Tempos depois, outros em Israel, geralmente aqueles que eram profetas acrescentaram palavras da parte de Deus:

Samuel expôs ao povo as leis do reino. Ele as escreveu num livro e o pôs perante o Senhor. Depois disso, Samuel mandou o povo de volta para as suas casas (1Sm 10:25).

Os atos, pois, do rei Davi, tanto os primeiros como os últimos, eis que estão escritos nas crônicas, registrados por Samuel, o vidente, nas crônicas do profeta Natã e nas crônicas de Gade, o vidente (1Cr 29:29 – ARA).

Quanto aos mais atos de Josafá, tanto os primeiros como os últimos, eis que estão escritos nas Crônicas registradas por Jeú, filho de Hanani, que as inseriu na História dos Reis de Israel (2Cr 20:34 – ARA).

Os demais acontecimentos do reinado de Uzias, do início ao fim, foram registrados pelo profeta Isaías, filho de Amoz (2Cr 26:22). 

Os demais acontecimentos do reinado de Ezequias e os seus atos piedosos estão escritos na visão do profeta Isaías, filho de Amoz no livro dos reis de Judá e de Israel (2Cr 32:32).

Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: Escreva num livro todas as palavras que eu lhe falei (Jr 30:2).

 

Conforme estudiosos, o último livro do Antigo Testamento a ser escrito foi Malaquias, entre 435 e 435 a.C., escrito depois da volta de Neemias para a Pérsia, durante o reinado de Artaxerxes (464-423 a.C.). Sendo assim, após 435 a.C. não houve mais acréscimos ao cânon do Antigo Testamento. A história do povo judeu foi registrada em outros escritos, como os livros dos Macabeus, mas ele não foram considerados dignos de inclusão na coletânea das palavras de Deus.

A primeira tradução do AT, a Septuaginta (LXX) é uma testemunha antiga da existência do cânon das Escrituras. Esse projeto de tradução foi realizado no Egito e planejado, de acordo com a lenda por Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.). Essa lenda é narrada na Epístola de Aristéias (100 a.C.), contando como 72 tradutores que conheciam profundamente o aramaico, hebraico e grego foram levados por Ptolomeu para Alexandria e hospedados na ilha de Faros, onde, em consulta entre si, produziram uma tradução harmônica. Contam-se as tradições posteriores (registradas por Fílon, Irineu e Clemente de Alexandria), que os 72 tradutores foram isolados em 72 cômodos separados e produziram 72 traduções independentes, porém concordes umas com as outras, palavra por palavra! Se essa história for verídica, não somente provaria que a LXX era inspirada, mas também que todo o AT era reconhecido como canônico já em 250 a.C.. Convém salientar que a LXX concluída continha não somente os 39 livros do cânon hebraico, mas também outros livros comumente chamados de apócrifos. Contudo para o povo judeus esses escritos, mesmo tendo uma certa relevância histórica (abrangem o período inter-testamentário) não “contaminavam as mãos”. Isso quer dizer que eles não os consideravam inspirados. Mas por quê? Eis aqui uma questão não facilmente solucionada. É provável que esses escritos apócrifos não “contaminassem as mãos” porque alguns deles continham erros (históricos, cronológicos e geográficos), porque eles parecem justificar falsidade ou engano, outros ainda ensinavam que a salvação dependia do mérito das obras. Mas resumidamente, não importa as razões, o fato é que os livros apócrifos foram excluídos do cânon hebraico pelo menos a partir do ano 90 d.C., mas incluídos no cânon da igreja.

Por volta do ano 180 a.C. Jesus ben-Siraque escreveu um livro em hebraico chamado Eclesiático. O neto de Jesus bem-Siraque traduziu Eclesiástico para o grego e acrescentou um prólogo de sua autoria, escrito aproximadamente em 130 a.C.. Esse prólogo talvez seja a evidência mais antiga da canonicidade de todo o AT. Certamente é a evidência mais antiga do fato de que o cânon hebraico era dividido em três partes, a saber, Lei, Profetas e Escritos (hagiógrafos – cada um dos livros do Antigo Testamento que não se acha incluído no Pentateuco e nos Profetas).

Os textos das cavernas de Qumran são mais uma evidencia antiga da formação do cânon do AT. Esses rolos do mar Morto são datados antes de 130 a.C. e contem citações de quase todos os livros do AT.

Fílon que morreu aproximadamente em 50 d.C. também apregoou a favor da divisão tríplice do cânon do AT. Ele escreve sobre leis, e as palavras anunciadas pelos profetas, e hinos e outros escritos.

O próprio NT talvez seja a melhor evidência antiga (45 – 95 d.C.) do cânon “estabelecido” das Escrituras do AT. Embora venhamos a dizer mais sobre a relação entre o AT e o NT posteriormente, observe de passagem que os autores do NT se referem ao AT como “a Escritura” (Jo 10:35; 2Pe 1:20), “Escrituras Sagradas” (Rm 1:2), “a Lei” (Jo 10:34), “a Lei e os Profetas” (Mt 5:17). Apesar desses nomes ou títulos não definirem os limites do cânon, certamente pressupõem a existência de uma coleção completa e sagrada de escritos judaicos que já estão destacados de toda a outra literatura como separados e estabelecidos. Conforme uma contagem, Jesus e os autores no NT citam mais de 295 vezes várias partes das Escrituras do Antigo Testamento como palavras autorizadas por Deus, mas nenhuma vez sequer citam alguma declaração extraída dos livros apócrifos ou qualquer outro escrito com se tivesse autoridade divina.

O historiador judeu Flávio Josefo (nascido em 37/38 d.C.) escreveu em seu livro Contra Apião (100 d.C.) a seguinte declaração: “Desde Artaxerxes até os nossos dias foi escrita uma história completa, mas não foi julgada digna de crédito igual ao dos registros mais antigos, devido à falta de sucessão exata dos profetas”.  Essa declaração de Josefo, o maior historiador do primeiro século da era cristã revela que ele conhecia os escritos que agora fazem parte dos “apócrifos”, mas que ele não os considerava fidedignos igual ao das obras conhecidas por nós como Escrituras do Antigo Testamento. Conforme o testemunho de Josefo, nenhuma “palavra de Deus” foi acrescentada à Bíblia após cerca de 435 a.C..

Nesse mesmo trecho de seu livro, Josefo diz:

Pois não temos um grande número de livros discordantes e conflitantes entre si. Temos somente 22, contendo o registro de todo o tempo, livros que são merecidamente considerados divinos. Desses livros, cinco são os livros de Moisés, que abarcam as leis e as tradições mais antigas desde a criação da humanidade até o tempo da sua própria morte […]. Da morte de Moisés até o reino de Artaxerxes, rei da Pérsia, o sucessor de Xerxes, os profetas que seguiram a Moisés escreveram a história dos eventos que ocorreram no seu tempo em 13 livros. Os quatro documentos restantes incluem hinos a Deus e preceitos práticos para os homens.

           

A partir dessas citações de Josefo, podemos destacar ao menos três características:

a) Para ele, o cânon, estava fechado e de fato tinha sido fechado na época de Artaxerxes, em especial, como já dissemos, na época do profeta Malaquias.

b) Esse cânon fechado era um cânon de 22 livros ordenados em três partes: cinco livros de Moisés, treze de profetas e quatro de hinos e preceitos práticos. Infelizmente Josefo não diz quais são os 22 livros, mas supostamente os treze livros dos profetas incluíam Josué, Juízes – Rute, Samuel, Reis, Crônicas, Esdras – Neemias, Ester, Isaías, Jeremias – Lamentações de Jeremias, Ezequiel, Daniel, os Doze profetas menores e talvez Jó (ou Cântico dos Cânticos); os hinos e preceitos básicos seriam constituídos de Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos (ou Jó).Se essa suposição está correta, o seu cânon do AT seria igual ao nosso, sem considerar a ordem dos livros dentro dele.

c) Suas declarações fornecem o primeiro critério para inclusão ou não de um livro no cânon, um critério de autoridade inquestionável: Foi escrito por um profeta? Josefo cria que de Moisés a Artaxerxes houve uma sucessão ininterrupta de profetas que escreveram a história e o pensamento do seu tempo, e que era isso que conferia a sés 22 livros sua santidade intrínseca e singular.

Outras evidências a respeito do fechamento do cânon bíblico do AT são encontradas no Concílio de Jâmnia, realizado em 90 d.C. e no Talmude, que é uma obra judaica que consiste na Mishná (finalizada em 200 d.C.) e na Guemará, um comentário colossal da Mishná, concluído em 500 d.C..

A mais antiga lista cristã dos livros do Antigo Testamento que existe hoje é a de Melito, bispo de Sardes, que a escreveu em cerca de 170 d.C., que é citada por Eusébio em seu livro História Eclesiástica, que escreveu em 325 d.C. o seguinte:

Quando cheguei ao Oriente e encontrei-me no lugar em que essas coisas foram proclamadas e feitas, e conheci com precisão os livros do Antigo Testamento, avaliei os fatos e os enviei a ti. São estes os seus nomes: cinco livros de Moisés, Gênesis, Êxodo, Números, Levíticos, Deuteronômio, Josué, filho de Num, Juízes, Rute, quatro livros dos Reinos [1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis e 2 Reis ], dois livros de Crônicas, os Salmos de Davi, os Provérbios de Salomão e sua Sabedoria [isso não é uma referência ao livro apócrifo chamado Sabedoria de Salomão, mas simplesmente uma descrição mais completa de Provérbios. Eusébio observa que Provérbios era comumente chamado Sabedoria por escritores antigos], Eclesiastes, o Cântico dos Cânticos, Jó, os profetas Isaías, Jeremias, os Doze num único livro, Daniel, Ezequiel, Esdras [Esdras incluiria Esdras e Neemias, de acordo com a maneira hebraica comum de se referir a livros agrupados].

 

Vale salientar que Melito não menciona aqui livro algum dos apócrifos, mas inclui todos os nossos atuais livros do Antigo Testamento, exceto Ester.  Por alguma razão havia dúvidas sobre a canonicidade de Ester em algumas partes da igreja antiga (no Oriente, mas não no Ocidente), porém no final as dúvidas foram esclarecidas e o costume cristão se tornou igual à visão judaica, que já tinha contado Ester como parte do cânon. Eusébio cita também Orígenes que teria confirmado a maioria dos livros do nosso presente Cânon do Antigo Testamento, inclusive Ester, mas nenhum dos apócrifos é declarado canônico.

Foi apenas em 1546 d.C. no Concílio de Trento, que a Igreja Católica Romana declarou oficialmente que os apócrifos fazem parte do cânon, com exceção de 1 e 2 Esdras e da oração de Manassés. É interessante lembrar que este Concílio foi a resposta da Igreja católica Romana aos ensinos de Martinho Lutero e da Reforma Protestante que se espalhavam rapidamente, e os livros apócrifos contêm apoio para o ensino católico romano de oração pelos mortos e justificação pela fé com obras. Um ponto interessante é que a Igreja Católica Romana, não denomina esses livros como “apócrifos” e sim como “deuterocanônico”, pois entendem que isso significa: “acrescentado mais tarde ao cânon” (o prefixo deutero significa “segundo”).

Para concluir, nós cristão hoje em dia não precisamos ter receio algum de que tenha sido deixado de lado ou que alguma coisa que não é palavra de Deus tenha sido incluída no cânon do Antigo Testamento.

 

3 O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

Se fossemos comprar uma bíblia hoje em dia, facilmente acharíamos a bíblia tradicional cristã ortodoxa contendo exatos 66 livros. Talvez poderíamos encontrar bíblias com alguns livros apócrifos, mas essas adições encontram-se somente no Antigo Testamento. O Novo Testamento que é objeto de nosso estudo agora, nunca recebeu acréscimos! É provável que a porcentagem de cristãos que tem algum conhecimento sobre livros apócrifos do NT seja muito pequena, aliás, você sabia que eles existiram? Argumentemos sobre isso agora:

O desenvolvimento do cânon do NT começa com os escritos dos apóstolos. O AT fecha com a expectativa do Messias vindouro, como lemos no último livro do AT, Malaquias. O próximo passo na história da redenção é a vinda do Messias! Os escritos do NT foram escritos principalmente por apóstolos, que receberam a capacidade do Espírito Santo para recordar precisamente as palavras e atos de Jesus.

É interessante notarmos que alguns escritos do NT são colocados ao lado das Escrituras do AT como parte do cânon das Escrituras, como podemos observar em pelo menos dois casos. Em 2 Pedro 3:16 lemos: “Ele escreve da mesma forma em todas as suas cartas, falando nelas destes assuntos. Suas cartas contêm algumas coisas difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis torcem, como também fazem com as demais Escrituras, para própria destruição deles.”. A palavra traduzida por “Escrituras” aqui é graphe, termo que aparece cinqüenta e uma vezes no NT e que se refere às Escrituras do AT em todas as passagens. A palavra “Escritura” era um termo técnico para os autores do NT e usada geralmente (quase somente) para designar aqueles escritos evidenciados como palavras de Deus, e conseqüentemente como parte do cânon das Escrituras. Nesse versículo, Pedro classifica os escritos Paulinos ao lado das “demais Escrituras”. Pedro os considera dignos de serem incluídos no cânon.

Outra passagem que podemos observar relevante a isso é 1 Timóteo 5:17-18, onde lemos: “Os presbíteros que lideram bem a igreja são dignos de dupla honra, especialmente aqueles cujo trabalho é a pregação e o ensino, pois a Escritura diz: ‘Não amordace o boi enquanto está debulhando o cereal’ e ‘o trabalhador merece seu salário’.”. A primeira citação das Escrituras, “Não amordace…” encontra-se em Deuteronômio 25:4, todavia a segunda, “o trabalhador…” não é encontrada em lugar algum do AT, então onde está essa passagem? Ela está em Lucas 10:7, onde as palavras gregas são exatamente as mesmas! Sendo assim, parece-nos que Paulo está citando uma porção do evangelho de Lucas e o chama de “Escrituras”, logo, esse trecho era algo que deveria ser considerado parte do cânon.

Conforme teólogos estudiosos, para um livro pertencer ao cânon do NT, é estritamente necessário que ele tenha autoridade divina. Se as palavras do livro são palavras de Deus, apesar de terem sido escritas por autores humanos, e se a igreja primitiva, sob a direção dos apóstolos, preservou o livro como parte das Escrituras, portanto o livro pertence ao cânon. Contudo se as palavras do livro não são palavras de Deus, ele não pertence ao cânon. Vejamos agora sobre a história propriamente dita do cânon do NT.

Na época de Clemente de Roma e dos demais pais apostólicos (em breve teremos uma série de posts versando sobre história eclesiástica), durante o primeiro e segundo século da era cristã, as cartas dos apóstolos e os Evangelhos considerados de autoria dos apóstolos, ou de seus colegas mais íntimos, foram reunidos e chamados “Apóstolos”, contíguos com os “Profetas” da bíblia hebraica.

Estudiosos historiadores da igreja eclesiástica concordam que a igreja deve muita coisa na questão do fechamento do cânon a um Herege. Conforme Olson (2002 apud CAMPENHAUSEN, 1972) “A idéia e a realidade de uma Bíblia cristã foram obra de Marcião e a Igreja, que rejeitou a sua obra, longe de estar adiante dele nesse campo, do ponto de vista formal, simplesmente seguiu o seu exemplo”. Marcião foi um mestre cristão que viveu em Roma durante o século II e apesar de sua teologia estar mais ligada a algumas formas de gnosticismo, ele, assim como Montano, julgava que a igreja carecia de uma reforma e ele o fez, tentando redescobrir e promover o que considerava ensino verdadeiro e original de Jesus. Para isso ele disse que o AT não tinha a mínima validade para os cristãos, pois apresentava uma espécie de um semideus tribal sanguinário.

Marcião foi talvez o primeiro que tentou definir um cânon cristão das Escrituras, e ele o fez da seguinte forma: ela era constituída de duas partes, uma versão editada do evangelho segundo Lucas e dez epístolas de Paulo. Essa versão logo foi aceita pelos marcionitas (seguidores de Marcião), contudo foi atacada com severidade pelos pais e bispos da igreja. Tertuliano (150-212 d.C.) escreveu uma obra intitulada “Contra Marcião” que é um excelente exemplo da polêmica cristã antimarcionita, Irineu (120-202 d.C.) também criticou Marcião e seus ensinos em seu livro “Contra heresias”.

Tendo isso ocorrido, a igreja cristã de Roma sentiu-se obrigada a criar um cânon, que podemos chamá-lo de semi-oficial. Por volta de 170, foi criado o “Cânon Muratório” para rebater o de Marcião. Este cânon alistava os quatro evangelhos, Atos e os demais livros contidos no NT (assim como a definição que existe ainda hoje), exceto Hebreus, Tiago e 1 e 2 Pedro. Incluía ainda, A Sabedoria de Salomão, e excluía o considerável e influente O pastor de Hermas. Apesar dessa lista não ser a versão definitiva, certamente ela contribuiu para o pensamento cristão de não excluir as Escrituras hebraicas, nem incluir toda e qualquer profecia ou escrito supostamente inspirado.

Os pais da igreja, como Irineu, Tertuliano e Orígenes (185-254 d.C.) criaram suas listas de Escrituras cristãs que variavam um pouco do “Cânonm Muratório” e entre si. Ireneu alistou os quatro evangelhos e a maioria das epístolas que posteriormente seriam canonizadas, rejeitou os evangelhos dos gnósticos e o cânon truncado de Marcião.  Após Irineu, Tertuliano e Orígenes seguiram os mesmos moldes.

As principais discussões no tocante a quais escritos deviam ser incluídos no cânon cristão das Escrituras giravam em torno de Hebreus, 1 e 2 Pedro, Judas, 3 João, Apocalipse, Tiago e o Didaquê, o Pastor de Hermas e a Epístola de Barnabé. Com o tempo, foi-se chegando ao consenso de que todos os escritos da primeira lista (Hebreus a Tiago) deviam ser incluídos no cânon devido seu grande uso em todas as igrejas cristãs e por causa da sua ligação com os apóstolos. O mais controvertido talvez tenha sido a pequena carta de Judas, que foi aceita devido o fato do autor, Judas, ser irmão do Senhor Jesus Cristo. Os escritos da segunda lista (Didaquê à Epistola de Barnabé) foram rejeitadas porque careciam da qualidade profético-apostólica (significa que os livros e as cartas precisavam ser amplamente reconhecidos por todas as igrejas cristas como uma reflexão da autoridade apostólica e como apresentação de verdades importantes para salvação e viver cristão) essencial e de ligação com o cristianismo primitivo.

Os últimos passos para o fechamento formal do cânon foram dados no século IV, por Atanásio, bispo de Alexandria e principal defensor da ortodoxia, que criou a primeira lista contendo somente os vinte e sete livros, de Mateus ao Apocalipse, e mais nenhum outro, em sua carta pascal às congregações cristãs do Egito em 367 d.C.. Esse texto de Atanásio não dá a menor impressão de querer apresentar qualquer idéia nova, muito pelo contrário, parece querer estabelecer a tradição normalmente aceita.

Posteriormente a esse fato, dois sínodos foram convocados na África do Norte, em Hipona e Cartago, em 393 e 397 d.C. respectivamente. Ambos declararam a lista de Atanásio como definitiva e autorizada! A partir disso a questão do NT estava resolvida! O cânon das Escrituras hoje é exata e precisamente o que Deus queria que fosse e assim certamente permanecerá até a tão esperada volta de Cristo!

 

 

4 CONCLUSÃO

Apesar da Bíblia ter sido composta por muitas pessoas de contextos históricos e culturais distintos, durante muitos anos, a Bíblia fala a partir de uma única Mente. Essa Mente supervisionou nos bastidores todo o processo que formulou o plano e desde o começo planejou como ele se realizaria, que é o seguinte:

“Quando nós lemos o AT podemos ver que é um livro sem desfecho. Ele começa falando sobre a nossa criação e origem, fala como nossos problemas começaram, em seguida mostra como esses problemas foram agravados, ele mostra como Deus resolveu interferir na história e como Deus construiu aquilo que nós chamamos de história da salvação.

Quando Deus constrói a história da salvação, Ele faz coisas extraordinárias na história de Israel, e através dos seus profetas diz: “Um dia chegará aquele que é o prometido de Deus para trazer a salvação”. Quando termina o AT, lá no finalzinho, no livro de Malaquias, está escrito: “O profeta Elias virá”, então está claro que o AT deixou espaço definido para chegada do seu complemento.

Quando o NT inicia-se, ele já vem com o encaixe apropriado, igual uma peça de lego, dizendo que o que está acontecendo aqui é exatamente o que Deus tinha falado. Quando chegamos ao final do NT, nós não vemos que virá uma terceira fase. Não, não vemos isso! Pelo contrário, o NT diz: essa revelação é definitiva! No final do livro de Apocalipse, ele fecha dizendo: “aqui acabou, não existe mais nada”, portanto o cânon da bíblia está fechado e nós não temos autorização de uma revelação nova que seja palavra de Deus com autoridade igual o NT e o AT. Não dá para aceitar que alguém tenha uma revelação dizendo que isso está no mesmo nível da palavra de Deus, pois mesmo que um anjo viesse nos dizer que tem uma revelação, que seja ele anátema, maldito!” (adaptado do programa Conversando com Luiz Sayão da RTM).

 

Em todas essas coisas vemos o zelo, cuidado e principalmente a soberania do nosso Deus em preservar tudo aquilo que nos era necessário para que pudéssemos conhecê-lo melhor!

Minha oração é que essa meditação, ajude-nos a ser cada dia mais gratos pela nossa nação, que não precisa ter medo de tensão!

Deus nos abençoe!

 

REFERÊNCIAS

 

BRUCE, F. F.. Comentário Bíblico NVI – Antigo e Novo Testamento. São Paulo: Editora Vida, 2009.

GEISLER, Norman L.. Enciclopédia de apologética – respostas aos críticos da fé cristã. São Paulo: Editora Vida, 2002.

GRUDEM, Wayne A.. Teologia Sistemática – Wayne Grudem. São Paulo: Vida Nova, 1999.

OLSON, Roger E.. História da teologia cristã – 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001.

Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

 

 

Todas as citações bíblicas foram extraídas da bíblia NVI (Nova Versão Internacional), salvo em citações específicas.

Sobre Alberto Azevedo

Paulista, paulistano, engenheiro civil, mero estudante de teologia... Casado com a mulher mais linda e sábia do mundo: Flavia Azevedo!! Ver todos os artigos de Alberto Azevedo

7 respostas para “Unidade da Bíblia 2/2

  • Thiago André Monteiro

    Betinho,

    excelente este artigo. Deve ter dado bastante trabalho de pesquisa, mas tenha certeza de que valeu muito à pena.

    Abraços,

    Thiago André Monteiro

  • Alberto Azevedo

    Thiago,

    Obrigado por visitar nosso blog! Realmente deu um trabalhinho para escrever, mas fico feliz que tenha valido a pena para vc, assim como para mim!

    Vamos aprendendo um pouquinho mais sobre o nosso Deus e seus registros a cada dia!

    Cresçamos pois na graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. 2Pe 3.18

  • igreja primitiva

    Para entender a importância dos livros apócrifos do antigo testamento na igreja primitiva visita… http://www.aigrejaprimitiva.com/dicionario/apocrifos.html

  • Rafael N. Ravazzi

    Betinho, que Deus continue te abençoando imensamente!!

    Obrigado, pois esse trabalho que você teve de escrever, serve para que outros irmãos possam desfrutar e aprender um pouco mais sobre nosso Deus maravilhoso.

    2Pe 1.16,20,21
    “Porque não seguimos a fábulas engenhosamente inventadas, quando vos fizemos conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, pois fomos testemunhas oculares da sua majestade.” …”Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal, porquanto, jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens santos falaram da parte de Deus, orientados pelo Espírito Santo.”

    Em Cristo, “em quem temos a plena redenção por meio do seu sangue”

    Grande Abraço meu irmão.

  • Vinicius Rodrigues

    Excelente trabalho! Agora, tenho uma pergunta: O canon foi “fechado” com Atanasio, correto? Isso ocorreu mais de 300 anos depois que o novo testamento foi finalizado. Nao seria mais logico pensar que houvesse um claro reconhecimento sobre esses livros muito tempo antes? E se, na epoca de Atanasio, a “Igreja” ja tivesse uma serie de erros, como confiar no julgamento deles em detrimento a canons de uma epoca menos propensa a desvios teologicos dentro da “ortodoxia” (como por exemplo, o Canon Muratorio (170dC ?))?

  • Geraldo Olegàrio de Campos

    Deus,cuida bem de tudo que é seu,como também dos seus
    filhos.
    Em Cristo somos mais que VENCEDORES…
    Obrigado irmão.

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